sábado, 19 de fevereiro de 2011

USO DA GÍRIA NA LÍNGUA PORTUGUES


Toda língua é essencialmente dinâmica, isto é, não constitui um sistema cristalizado e definitivo, mas ao contrário, está sempre se modificando, vivendo um processo contínuo de combinação, composição e aperfeiçoamento. É verdade que existe convergência lingüística para a forma considerada ”superior” - a chamada “língua de cultura” -, estabelecida principalmente pelas escolas, o que não impede a divergência expressa principalmente pelos falares regionais, pelos dialetos e pela gíria.
Em seu sentido mais estrito, a palavra “gíria” designa a linguagem oculta, ou seja, um código lingüístico secreto de certos grupos sociais relativamente fechados (fala-se, por exemplo, em gíria de artistas, de soldados, de estudantes, de ladrões, etc.). Essa linguagem funciona, então, como elementos de coesão do grupo, e na medida do possível mantém-se restrita a ele, guardando sempre algum cunho de segredo, de mistério. Não é, portanto, o caso das chamadas línguas especiais de grupos profissionais - médicos, economistas, advogados, etc. - , que simplesmente se caracterizam por um vocabulário eminentemente técnico.
No entanto, a gíria pode ser apenas o resultado de um prazer verbal que diverte e intriga tanto o locutor quanto o ouvinte, e que acaba por se incorporar à língua comum graças, sobretudo, aos meios de comunicação, que a difundem e valorizam, tirando conseqüentemente aquilo que ela poderia ter de misterioso. Esse processo de absorção também pode ocorrer com a linguagem própria de alguns grupos sociais, que no início é novidade, mas depois de difundida e valorizada, incorpora-se ao patrimônio lingüístico e perde o sabor de mistério. Nessa fase, é muito difícil traçar os limites entre a gíria e a língua popular.
Do ponto de vista da lingüística, a gíria é um instrumento secundário de comunicação caracterizado pela riqueza, pela espontaneidade, pela força de expressão, atestando as freqüentes mutações sociais, as conquistas tecnológicas e a modificação dos modos de viver da comunidade. Mas ela necessita de renovação constante, porque o uso a desgasta; passa rapidamente ao domínio público e então é incorporada à língua coloquial, à do dia-a-dia. Seu caráter de coisa encoberta, mascarada, conhecida de poucos, exige, em conseqüência, contínuas modificações. Essa fluidez faz com que certos termos fiquem “velhos” em pouco tempo – quem chamaria de peixão, hoje, a uma mulher muito atraente?, ou de balzaqueana a uma outra além dos quarenta anos de idade? -, mas não elimina o ressurgimento de muitos deles – “bacana” parece ainda estar ”na onda” -, dependendo do meio em que são utilizados. Costuma-se até medir as gerações pelas gírias que empregam, já que os jovens são mais permeáveis às constantes inovações.
Os tempos dão às palavras significados que mudam. Por exemplo: "ficar". Qualquer dicionário de língua portuguesa traz o significado da palavra, que todo mundo sabe qual é. Nos últimos tempos, porém, os jovens deram a essa palavra um novo sentido. Vejamos o que ocorre com "ficar" na letra da canção "A cruz e a espada", gravada por Paulo Ricardo:
... E agora eu ando correndo tanto / procurando aquele novo lugar / e aquela festa, o que me resta / encontrar alguém legal pra ficar / e agora eu vejo, aquele beijo / era mesmo o fim / era o começo e o meu desejo / se perdeu de mim.
O que seria "alguém legal pra ficar"? A expressão "ficar", com a acepção que tem na canção, quer dizer algo como "ter um leve envolvimento com alguém, sem compromisso". Um rapaz vai a uma festa, conhece uma garota e fica o tempo todo com ela, o que pode incluir beijos e abraços. Será que esse significado permanece por muito tempo?
É impraticável definir traços constantes de gíria, circunscrevê-la ou mesmo atestar sua autenticidade fora do meio restrito em que é usada. Como suas zonas limítrofes são flutuantes, não se pode separá-la nitidamente da linguagem popular, já que a integração entre uma e outra é freqüente, garantindo um processo de constante renovação. Por outro lado, a utilização dos termos de gíria varia de uma categoria social para outra, mas só no aspecto quantitativo – na verdade, qualquer grupo social está disposto a empregá-los em determinadas situações. Agindo em sentido contrário encontra-se a escola, que preocupada quase exclusivamente com a “linguagem de cultura” escrita, procura cercear o emprego de formas divergentes. Estas, porém -, especialmente, a gíria -, coexistem sempre com a língua padrão, enriquecendo-a e dinamizando-a.
Seja de que tipo for, atualmente a gíria vem sendo cada vez mais usada pelos meios publicitários e jornalísticos, na música e em outras manifestações artísticas. Sua difusão é velocíssima e muito ampla, o que leva à multiplicação do gosto popular pelo emprego dos neologismos que ela introduz. Com isso, vai sendo incorporada dom extrema rapidez à língua comum, falada e escrita, sendo que nesta última é utilizada principalmente para imprimir autenticidade à fala de certas personagens, para manter clima de realismo e humor à volta delas.

FERNANDO KITZINGER DANNEMANN

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