sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Política de formação de professores no Brasil: as ciladas da reestruturação das licenciaturas


Política de formação de professores no Brasil: as ciladas da reestruturação das licenciaturas
Maria Helena G. Frem Dias-da-Silva
Resumo:
O artigo analisa algumas das ciladas que foram desencadeadas nesses últimos dois anos (2002/2004) a partir da exigência de reformulação dos cursos de licenciatura nas universidades públicas, impactadas pela necessidade de implantação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores o que, podia-se antever, apontava para a fragilização do papel formador do conhecimento educacional e para a desprofissionalização dos professores. Mediante interpretação dos conflitos/ embates que estiveram presentes no cotidiano universitário e também da análise decorrente da experiência em pesquisa colaborativa com professores e escolas públicas, o trabalho procura problematizar alguns aspectos nevrálgicos implicados na reformulação curricular, com destaque para: o conhecimento educacional, a parceria universidade-escola e as condições de trabalho dos professores e seus formadores.
Palavras-chave:
Professores-Formação. Currículos-Mudança. Ensino Superior.

Talvez o Brasil nunca tenha vivido período no qual a educação foi tão destacada nos discursos de políticos e empresários, nunca se teve assegurada em lei a possibilidade de construção de projetos político-pedagógicos e gestão democrática das escolas, nunca se teve tão facilitado o acesso à informação e à bibliografia internacional, nunca se dispôs de tamanha diversidade de materiais e veículos para instrumentalizar o processo educacional, nunca as famílias brasileiras de camadas médias destinaram tão grande parte de seu orçamento à educação de seus filhos, nunca se teve disponíveis tantos resultados de pesquisa sobre a realidade brasileira (são centenas de dissertações e teses defendidas anualmente, só na área de Educação) e, sobretudo, sob os auspícios do Banco Mundial, nunca o país investiu tanto na formação continuada de seus professores. Por outro lado, em nenhum outro momento da história brasileira atingimos os atuais índices de desemprego: a luta por melhores condições de trabalho sucumbiu à luta pelo emprego cada vez mais precarizado.
Atingimos hoje alarmantes índices de violência que, aliados ao consumo de drogas e à industrialização do crime organizado, tem levado a sociedade civil a um processo de apartação, policiamento e desobrigação, sobretudo com os jovens de camadas populares. Vivemos também uma crise ética, em que o consumo e o mercado parecem como senhores da razão. “Razão” cada vez mais ditada pela mídia – essa grande senhora que vem produzindo um país em que o maior sonho de um jovem é se tornar jogador de futebol, modelo e manequim, ou ator, pela sedução oriunda de uma vida glamourosa e farta.
É nesse contexto paradoxal entre modernidade e barbárie que a legislação brasileira reformula as regras para nossa educação, a partir da promulgação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), lei nº 9394/96 (BRASIL, 1996). Um processo polêmico que ignorou a trajetória de reflexão e discussão da própria área de educação, representada por suas entidades, consolidando um projeto educacional de cunho neoliberal, em que um Estado mínimo se desobriga de sua responsabilidade histórica ao mesmo tempo em que pactua com o aligeiramento e barateamento da formação das novas gerações.
É neste contexto, em que a educação comparada parece se construir como fonte de garantia do sucesso dos projetos educacionais, que a comparação entre países desiguais vem se tornando uma forma de promover e garantir as políticas públicas, norteadas meramente por avaliações que, apesar de “espetaculosas” e muitas vezes contraditórias, apenas são retoricamente utilizadas para justificar o que previamente estava estabelecido.
Nessas circunstâncias, perigosamente, temos presenciado projetos educacionais que apontam documentos da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) ou Órgão das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), quando não relatórios do Banco Mundial, como suas principais referências bibliográficas. Substituem-se, assim, os argumentos de natureza filosófica, sociológica ou psicológica por planilhas e bancos de dados voltados ao conceito ora hegemônico de “custo-benefício”. Este cenário, que impõe a primazia da argumentação econômica, é também decisivo para a reconceituação da educação como mercadoria, como serviço a ser comprado e não mais como direito social de todo cidadão. Reconceituação que, por um lado, consolidou o progressivo desinvestimento na e desvalorização da escola pública pelas camadas médias (contribuindo decisivamente para o seu descrédito também disseminado nas camadas populares) e, por outro, transformou as instituições educacionais no ramo mais rentável para o empresariado brasileiro nesta década (ROSENBURG, 2002). Tal contexto vem gestando, entre nossos professores, alarmantes índices de abandono da profissão e/ou de doenças de natureza psicossomática e, talvez, o que seja pior, o desinvestimento e desânimo com seu trabalho cotidiano, diretamente associado ao descrédito e à desarticulação política da categoria profissional que fortalecera nos anos oitenta.
Entretanto, é inegável admitir que esses últimos anos também trouxeram avanços importantes para a área educacional: enquanto nos anos oitenta as pesquisas brasileiras investigavam módulos instrucionais ou materiais didáticos, reforçando um tecnicismo reducionista, a última década possibilitou a produção de importantes resultados de pesquisa que descrevem e analisam o cotidiano de escolas, professores e alunos e/ou interpretam a profissionalidade docente. Adensam-se, também, estudos sobre a constituição dos conteúdos escolares e a cultura escolar, ampliando o conceito de currículo. Parece impossível negar que os professores foram re-significados para a compreensão e consolidação do processo de educação escolar. Esta perspectiva diversa implicou uma concepção diversa tanto da tecnicista, que reduzia os professores a meros executores de planos elaborados alhures, impondo-lhes “pacotes pedagógicos” quase sempreinviabilizados pelo rótulo de incompetência que lhes foi atribuído, quanto da concepção reprodutivista que os anulava sob o rótulo de alienados perpetuadores da ideologia de uma classe dominante perversa. Ao apontar o papel de protagonista dos professores, numa concepção mais conseqüente e humanizadora, essa abordagem reconhece os professores como intelectualmente hábeis e competentes para analisarem a realidade, tomar decisões e (re)criar alternativas de ação político-pedagógica1 .
Enquanto nos anos oitenta os cursos de formação básica sempre foram responsabilizados pela (in)competência dos professores, cujo trabalho era igualmente desqualificado por se revelar fundado num ecletismo teórico (ou no senso-comum, intuitivamente partilhado), hoje nossas pesquisas apontam que os professores são portadores de um saber profissional que alia suas concepções e crenças à sua formação e vivência profissional, reconhecendo a formação de professores como um contínuo construído em long-life learning, admitindo que professores são sujeitos e não meros objetos de uma escola injusta e desigual.
No entanto, é igualmente inegável que, atualmente, temos visto o reforço das acusações acerca da incompetência e/ou inércia do magistério: muitas vezes o discurso oficial se apropria de questões essenciais à construção da educação democrática e, travestido de seus fundamentos e compromissos, camufla para “capacitação em serviço dos professores reflexivos” toda uma gama de questões políticas e problemas estruturais do sistema educativo, ignorando condições de trabalho e formação docente (POPKEWITZ, 1998). Assim, milhões de dólares são investidos em programas de educação continuada, negligenciando o papel (decisivo) da formação profissional geral básica dos professores, suas condições de trabalho (incluindo salário) e aspectos estruturais do sistema escolar como condicionantes decisivos para a transformação da escola. Os argumentos de Torres (2000) são decisivos para interpretação desse processo: não podemos esquecer que as propostas vigentes dos economistas do Banco Mundial, ignorando a real dimensão reflexiva dos educadores e seu papel para a democratização da escola, têm reduzido a apregoada “melhoria da qualidade da educação” à compra de equipamentos, implantação de mecanismos de avaliação, padronização de diretrizes curriculares e implantação de projetos de educação à distância.
Assim, o paradoxo social que presenciamos parece se repetir na área de educação escolar, sobretudo nas investigações e estudos sobre trabalho docente e formação de professores, levando-nos a ciladas perigosas, as quais implicam que os anúncios de avanços na concepção de política educacional podem ter se transformado em retrocessos sociais. Vejamos.
Se nos anos oitenta, as pesquisas brasileiras revelavam a presença de ensino verbalista, mnemônico e acrítico, atualmente nossos resultados vêm apontando a presença de uma escola pública “cada vez mais dura, mais seca e nada hospitaleira” (SAMPAIO, 1998), cuja progressiva minimização do ensinar-aprender pode estar produzindo uma escola “dos que passam sem saber”, gerando intensos dilemas profissionais para os professores (LOURENCETTI, 2004). Justificados pela crise social e ética, convivemos com a primazia do papel socializador da escola, que pode estar produzindo uma geração de ‘pseudo-escolarizados’ – um sidão qui num tem qem incina, como analisei em trabalho anterior (DIASDA-SILVA, 2003). Talvez vivamos o momento em que as escolas brasileiras estejam deixando de ser “templos de civilização” (SOUZA, 1999), para se converter em templos de ignorância e omissão.
Temo, cada vez mais, que, em nome da inclusão social, das críticas ao “conteudismo” de nossa escola, do enfrentamento da violência juvenil, possamos estar assistindo a um perverso processo de descolarização dos jovens brasileiros.
Processo semelhante pode estar ocorrendo com o magistério: se nos anos oitenta a formação de professores se reduziu a treinamentos e reciclagens, impondo aos professores modalidades e procedimentos didáticos afastados da realidade cotidiana das escolas e suas comunidades, atualmente nossas pesquisas denunciam o risco da proliferação de projetos de capacitação dos professores reflexivos, baseados no conhecimento construído a partir da prática, correndo o risco de precarizar sua profissionalidade mediante o cumprimento de programas aligeirados e banal1izados de formação, produzindo apenas professores “sobrantes” (KUENZER, 1999).
Cada vez mais temo que, em nome da inclusão social, da valorização dos saberes docentes e da importância do cotidiano escolar mediando a formação docente, possamos estar vivendo um processo de DESPROFISSIONALIZAÇÃO dos professores.
A profissionalização dos professores está diretamente ligada à trajetória de nossos cursos de licenciatura, responsáveis pela formação dos professores chamados “especialistas”, ou eternamente professores “secundários” – professores que lecionam as diferentes disciplinas/áreas que compõem o currículo escolar nas séries finais do ensino fundamental (5ª a 8ª ) e no ensino médio. Diversamente à Escola Normal, os licenciandos brasileiros parecem nunca terem tido um locus privilegiado de formação.
É preciso reconhecer que nossa cultura universitária historicamente delegou reduzido prestígio à área de Educação nos embates pela hegemonia acadêmica no campo da ciência brasileira. Assim, a criação dos cursos de licenciatura aparece muito mais como um ônus que os cientistas pagaram para consolidar seus projetos de formação dos bacharéis, o que possibilitou que, desde os anos oitenta, essa tarefa “pouco nobre” fosse assumida pelas faculdades particulares. Como afirmava o Professor Menezes, “A Universidade tem aceitado formar professores como uma espécie de tarifa que ela paga para fazer ciência em paz.” (CATANI, 1986, p. 120).
Vale lembrar que a expansão do acesso ao ensino fundamental, a partir dos anos setenta, implicou a necessidade de recrutamento maciço de professores para atender a demanda crescente dos alunos da 5ª a 8ª séries, levando também as universidades a criarem as “Licenciaturas Curtas”, processos aligeirados de certificação de professores, cujas conseqüências todos conhecemos. De lá para cá, pouco se avançou nos desenhos curriculares para as licenciaturas plenas, cujas exceções se devem à criação de fóruns de licenciatura em algumas universidades nos anos noventa e as tentativas de criação de disciplinas “integradoras” e detalhamento de projetos de estágio (PEREIRA, 2000). Como analisa Pagotto (1995) foram raras as propostas inovadoras para os cursos de licenciatura que, mesmo quando foram produzidas, dificilmente conseguiram ser implementadas.
Uma síntese apresentada no estudo de Pereira (2000) aponta que os principais dilemas presentes nas licenciaturas brasileiras são: a separação entre disciplinas de conteúdo e disciplinas pedagógicas, a dicotomia bacharelado & licenciatura (decorrente da desvalorização do ensino na universidade, inclusive pelos docentes da área de Educação) e a desarticulação entre formação acadêmica e realidade prática de escolas e professores.
Assim, a rigor, a maioria das licenciaturas continua a perpetuar o chamado modelo 3 + 1, sendo esse único ano destinado aos conteúdos de natureza pedagógica reduzido ao mínimo estabelecido em lei, portanto restrito ao oferecimento das quatro disciplinas: Estrutura e Funcionamento do Ensino, Psicologia da Educação, Didática e Prática de Ensino.
Sob esse cenário, composto por dilemas que “persistem desde sua origem, sem solução” (PEREIRA, 2000, p. 58), são propostas as alterações estabelecidas pelas novas diretrizes para formação de professores decorrentes da recente LDBEN: construir cursos com identidade própria, procurando superar as clássicas dicotomias teoria&prática e licenciatura&bacharelado, inspirados na abordagem de competências. Talvez, mais uma vez, a educação brasileira procure forjar mudanças a partir da proposição de leis que se confrontam com a cultura organizacional, gerando infinitos embates nas universidades públicas.
Procuro, neste trabalho, apontar algumas das ciladas que podem estar associadas à desescolarização dos alunos e à desprofissionalização dos professores mediante análise dos conflitos/embates que estiveram presentes no cotidiano universitário, nesses últimos dois anos (2002/2004), desencadeados a propósito da reformulação dos cursos de licenciatura nas universidades públicas, impactadas pela necessidade de implantação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores2 . Para isso, recupero discussões que vivenciei, seja como membro de Comissão de Estudos constituída pela Reitoria da UNESP (Universidade Estadual Paulista) para analisar as implicações das Resoluções (CARVALHO, 2003a), seja em meu próprio cotidiano de trabalho como professora de Didática numa Faculdade com três cursos de Licenciatura (CHAKUR, 2004). Acrescente-se a troca de informações com colegas de outras universidades nas regiões Sul e Sudeste. Também fonte decisiva para minha análise são os resultados de alguns projetos de pesquisa colaborativa realizados entre universidade-escola, desenvolvidos, sobretudo, no Programa Especial da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) “Melhoria do Ensino Público” (MARIN, 2000; DIASDA-SILVA, 2001, 2003) entre outros.
A hipótese que construo neste momento é a de que, em nome da importância da relação teoria/prática, da interação dos graduandos com seus loci reais de trabalho e da construção de projetos pedagógicos com identidade própria (que incluam os “bacharéis”) –aspectos centrais das Resoluções do Conselho Nacional de Educação (CNE), as reformulações curriculares dos cursos de licenciatura podem ter resultado na negação do papel formador que cabe à área de Educação, decorrentes da banalização e/ou negação do conhecimento educacional. Temo que, semelhante ao processo de desinvestimento no conhecimento que vem rondando nossas escolas básicas, também estejamos nos cursos de licenciatura – em nome da valorização do cotidiano de escolas dos saberes dos professores e suas “práticas” – negligenciando o conhecimento educacional nos desenhos curriculares reformulados. Seguem alguns exemplos.
O conhecimento educacional (os conteúdos de natureza pedagógica) A nova legislação impactou as universidades, de fato, com a Resolução CNE/CP 02/2002 (BRASIL, 2002b), que impositivamente instituiu a duração e a carga horária mínima para os Cursos de Licenciatura. Apesar da contradição com a Resolução CNE/CP 01/2002 (BRASIL, 2002a) – cujas diretrizes previam liberdade de construção de projeto pedagógico para as instituições (incluindo um quinto da carga para conteúdos de natureza educacional) –, a questão que realmente afetou a reformulação dos cursos, para implantar a nova legislação, foi a obrigatoriedade de cumprimento de créditos curriculares destinados à realização de atividades de natureza “prática”, decorrente da imposição de uma (inédita) carga horária de 1000 horas destinadas a: 400 horas de “prática como componente curricular”, 400 horas de “estágio curricular supervisionado de ensino”, além de 200 horas de “outras formas de atividades acadêmico-científico-culturais”.
A cada reunião de colegiado, qualquer discussão entre colegas deixava evidente que o grande impacto advindo dessas Resoluções não recaiu sobre a qualidade dos cursos ou sobre a relevância de seus conteúdos formativos. A questão central passou a ser aritmética: impregnados por uma cultura organizacional legalista, acostumada ao estabelecimento de currículos mínimos para cursos de graduação, aliada aos eternos embates bacharelado&licenciatura, o resultado imediato dessas resoluções para nossas universidades se reduziu ao loteamento de horas na grade curricular, com conseqüências desastrosas para a construção do conhecimento dos futuros professores.
Tenho ouvido relatos de “empresas educacionais” que em seus cursos precarizados, baseados nas Resoluções do Ministério da Educação e Cultura (MEC), reduziram os cursos de licenciatura a 1800 horas, carga horária quase equivalente a algumas extintas licenciaturas curtas. Enquanto isso, no cotidiano das universidades públicas, a questão central passou a ser quantas horas? Ou, pior: não dá pra jogar isso pra fora do horário do curso? Muitas vezes, no limite, sustentados por uma leitura possibilitada pela legislação, vários desenhos curriculares foram projetados considerando a formação docente como atividade extracurricular.
Por outro lado, por trás da contagem de horas ficou subjacente a (ir)relevância dos conteúdos educacionais. Recupero aqui o que considero terem sido as duas perguntas mais formuladas durante os intensos confrontos em nossas universidades nesses anos de embates sobre a reestruturação curricular:
a) Os conteúdos de natureza educacional presentes nas tradicionalmente chamadas “disciplinas pedagógicas” são “conteúdos de natureza acadêmico-científico-cultural” ou são prática como componente curricular?
b) Os estágios curriculares são atividades ou equivalem à disciplina tradicionalmente chamada de prática de ensino?
Nesse cenário contraditório, inspirado pela legislação que gerou toda sorte de desencontros, eclodiram os preconceitos com as disciplinas de natureza pedagógica3 . Assim, durante as reuniões, não raramente, os “bacharéis” explicitavam sua avaliação sobre a ineficácia dos conteúdos tecnicistas a que foram submetidos em suas graduações, que produziu o rótulo perfumaria para as disciplinas pedagógicas. Outras vezes, aparecia claramente a concepção de ensino como dom ou habilidade pessoal construída mediante domínio do conhecimento na área específica. Em ambos os casos, nosso papel formador é considerado inócuo.
Vale registrar que tanto uma interpretação quanto a outra (que nossas disciplinas se reduzem à perfumaria tecnicista ou que ensinar é uma descoberta pessoal) revelam total desconhecimento das principais discussões e teorias presentes na ciência educacional contemporânea4 .
Esse desconhecimento é acirrado quando percebemos que a universidade, na maioria das vezes liderada pelos colegas bacharéis, não reconhece nas disciplinas de natureza educacional
seu papel decisivo para a compreensão dos dilemas da sociedade contemporânea, pressuposta no estudo dos fundamentos filosóficos e sociais da educação que permitem analisar os projetos sociais em disputa, essenciais para a formação política dos futuros professores. A universidade não legitima (ou desconhece?) os conhecimentos produzidos pela área de educação sobre os sujeitos e processos da educação escolar, a construção histórica dos conteúdos escolares ou de suas práticas de gestão, incluindo as políticas públicas.
Paradoxalmente, talvez a área de educação nunca tenha produzido tanta pesquisa sobre a realidade brasileira e nunca foi tão ignorada. Entretanto, é decisivo apontar que talvez a própria área possa estar contribuindo para a minimização dos conteúdos de natureza educacional, ao defender um modelo que supervaloriza as “competências” e “práticas” como se elas fossem conseqüências de uma empiria cega. Apesar do incômodo, preciso apontar que o uso político de nossas pesquisas pode também estar gerando equívocos que beneficiam a desqualificação do conhecimento educacional, quando salientam a relevância dos saberes da prática ou do desenvolvimento pessoal dos professores.
Como analisa Moraes (2003, p. 149): “o ceticismo epistemológico e o empobrecimento da noção de conhecimento assentados no terreno escorregadio do relativismo” têm implicações decisivas para a educação e para a área de formação de professores, reduzidos à “empiria das tarefas cotidianas, pela formatação da capacidade adaptativa dos indivíduos, pela narrativa descritiva da experiência imediata e busca da eficácia na manipulação do tópico.” Concordo com a autora quando alerta para a supressão da discussão teórica associada à pedagogia das competências que se apresenta como utopia praticista, para a qual basta o “know-how, e a teoria é considerada perda de tempo ou especulação metafísica; quando não, é restrita a uma oratória persuasiva e fragmentária, presa à sua própria estrutura discursiva.” (MORAES, 2004, p. 153-154). Assim, em nome da valorização dos saberes docentes e do enfrentamento da dicotomia teoria-prática, talvez a própria área de educação possa estar contribuindo para a desprofissionalização dos professores apostando que sua formação seja essencialmente “prática”, permitindo que sua formação seja “extracurricular”. Seja em decorrência do discurso pós-moderno ou da crítica ao “conteudismo” da escola brasileira, seja em nome da valorização dos processos contínuos implicados na aprendizagem da docência, estou convencida de que estamos enfrentando uma cilada perigosíssima.
É preciso reconhecer que não são raros os projetos e discursos que, justificados pelo argumento da formação de um professor “prático reflexivo”, que deve “refletir sobre seu trabalho e suas concepções”, estão transformando a formação de professores em feiras de vivências pessoais partilhadas – como rotularam Carvalho (2003b), cursos que são meras disneylândias pedagógicas.
Vale lembrar que mesmo o professor norte-americano Zeichner (1993), um dos grandes disseminadores do conceito de professor como prático reflexivo, faz um alerta absolutamente decisivo, já no início da década passada:
Há o perigo de uma pessoa se agarrar ao conceito de ensino reflexivo e de ir longe demais; isto é, tratar a reflexão como um fim em si, sem ter nada a ver com objetivos mais amplos[...] A reflexão pode, em certos casos, solidificar e justificar práticas de ensino prejudiciais para os alunos e minar ligações importantes entre a escola e a comunidade[...] Por vezes os professores reflexivos podem fazer coisas prejudiciais melhor e com mais justificações. (ZEICHNER, 1993, p. 25).
A literatura aponta claramente que a formação docente é um processo de formação intelectual e cultural e que envolve aspectos de natureza ética e política. Portanto, reconhecer e respeitar os professores não significa a legitimação a priori de princípios pragmaticamente partilhados numa cultura escolar perversa e excludente. Valorizar os saberes docentes não implica perpetuar as trajetórias equivocadas vividas durante os processos formativos. As análises sobre a precariedade de capital cultural de nossos professores não pode implicar que seu curso de licenciatura contribua para perpetuar a pobreza simbólica que a sociedade brasileira impõe à maioria de seus cidadãos.
A busca da profissionalidade docente, a construção de práticas pedagógicas includentes e a defesa de condições de trabalho justas – tendo como pano de fundo um projeto pedagógico crítico e democrático para nossa escola pública – são aspectos decisivos na formação dos novos professores “especialistas”, alvos de nossas licenciaturas. É igualmente imprescindível que reconheçamos a relevância social da escolarização das camadas excluídas da sociedade brasileira mediante o domínio do conhecimento historicamente acumulado e socialmente valorizado, tarefa histórica dos professores “secundários” (licenciados).
Portanto, há inúmeros “conteúdos” que precisam ser dominados por nossos licenciandos durante sua formação inicial: os professores atualmente necessitam se apropriar de muito mais conhecimentos sobre a realidade social e escolar – desde analisar as implicações do modelo neoliberal para concepção de educação até desvendar e interpretar as culturas jovens, suas tribos e ritos; desde analisar criticamente a sociedade desigual em que vive até desvendar a contribuição do conhecimento científico para a interpretação de seus hábitos e práticas; desde decifrar as novas fontes de informação e seus mecanismos até a contribuição da arte como possibilidade de enfrentamento da violência que perpassa nosso cotidiano; desde conhecer profundamente os processos de raciocínio e pensamento dos alunos até dominar processos e modalidades de construção de um leitor crítico etc. E todos esses aspectos implicam domínio do conhecimento educacional – suas teorias, pesquisas e estudos, seus autores clássicos e contemporâneos, suas análises e interpretações, suas hipóteses e teses: enfim conhecimento; conhecimento racionalmente construído, que permita interpretar os homens, suas sociedades e culturas, seu pensar e seu agir. Como aponta Patto (2004), conhecimento que implique a atitude filosófica e a problematização da realidade numa perspectiva histórica. Portanto, não basta aos licenciandos participarem de projetos e vivenciarem o cotidiano escolar reduzido à perpetuação do senso comum. Sua formação intelectual é imprescindível!
A relação universidade & escola
Questão central nas novas diretrizes para formação de professores no Brasil, endossando a tendência internacional presente na maioria desses projetos, é a inclusão das escolas básicas e de seus professores como parceiros nas tarefas de formação. Um processo de dupla mão: tanto as instituições formadoras reconhecem a força da escola como locus de formação docente, quanto contribuem para a transformação das escolas.
Ao legitimar a idéia de que escolas básicas e seus professores devam ser parceiros nas tarefas de formação, a legislação brasileira – talvez pela primeira vez – reconhece a avaliação, a experiência e o julgamento dos professores como enriquecedores dos processos de formação inicial.
Nesse cenário, ainda que algumas universidades continuem apostando em projetos de escolas-de-aplicação, a grande maioria dos projetos formativos prevê a inserção dos graduandos em loci de trabalhos reais, envolvendo alunos de escolas regulares (não-experimentais) as quais serão alvos de investigação e intervenção dos graduandos, aprendendo, ensinando e convivendo com alunos, professores, diretores, funcionários, pais e especialistas de uma escola concreta.
Para sua viabilização é imprescindível que a relação universidade-escola seja formalmente configurada mediante o estabelecimento de projetos de parceria: as atividades de estágio não podem continuar decorrendo de decisões idiossincráticas, baseadas em acordos ou relações pessoais de um ou outro professor mais comprometido (em geral, os docentes responsáveis pela “Prática de Ensino”). É decisivo que esses projetos sejam implementados –de forma oficial, mediante convênios e acordos entre escolas e instituições formadoras – visando um processo de mútua colaboração: tanto as escolas e seus professores qualificam a formação de nossos licenciandos, quanto a universidade contribui para a qualificação das escolas, seus projetos e professores.
Visando contextualizar as prescrições legais e viabilizar a implantação da reformulação preconizada pelas diretrizes, cabe-nos analisar quais são os determinantes da “interação sistemática com as escolas de educação básica, desenvolvendo projetos de formação compartilhados.” (BRASIL, 2002a) . Nesse sentido, algumas questões são inevitáveis: como nossa cultura organizacional concebe essa relação das escolas com as universidades? Como se estabelecem, historicamente, as relações professores do ensino básico (em várias línguas apartadas inclusive nas palavras, como teacher, maestro, lêhrer) com os professores universitários?
Que papel os sistemas escolares brasileiros vem concedendo às universidades? Quais as relações de poder subjacentes à entrada da universidade nas escolas e vice-versa?
Viabilizar projetos formativos em parceria com escolas implica o enfrentamento de questões organizacionais historicamente enraizadas, além de embates políticos (ideológicos quase sempre) e alterações de concepções e práticas educativas, seja por parte dos docentes universitários seja dos professores da educação básica e, sobretudo, de seus dirigentes. Decididamente, questões nada fáceis.
 Baseada em nossa experiência de pesquisa colaborativa com professores e escolas públicas no Programa da FAPESP, “Melhoria do Ensino Público” (MARIN, 2000; DIAS-DA-SILVA, 2003) , entre outros, bem como em trajetória de quase uma década de realização de projetos desenvolvidos pelos Núcleos de Ensino da UNESP5 , procuro aqui problematizar alguns aspectos nevrálgicos para viabilização dessa parceria universidade-escola, cujo enfrentamento é bastante delicado, desnudando outras ciladas oriundas da reestruturação das licenciaturas.

Um primeiro aspecto que merece ser alvo de análise e reflexão diz respeito à relação das universidades com as políticas públicas que norteiam as reformas educacionais. Considero central registrar que, nesses últimos anos, em muitos estados brasileiros, os organismos estatais têm preferido parcerias com ONGs e/ou empresas de consultoria para construir seus projetos curriculares, muitas vezes apontando-as como mais competentes e objetivas que as equipes de universidades para a proposição de alternativas para a implantação das reformas pretendidas pelo Estado. Inegável reconhecermos que, infelizmente, boa parte das políticas públicas brasileiras não se assenta sobre nossos resultados de pesquisa, como já sinalizava Torres (2000). Nesse caso, a parceria universidade&escolas pode reduzir a tarefa de formação de professores à disseminação e/ou implantação de projetos educativos que muitas vezes são contraditórios com o projeto formativo construído pela universidade em seus cursos de licenciatura.
Além disso, é inevitável registrarmos também as implicações político-partidárias no processo de gestão educacional dos sistemas educacionais brasileiros: a necessária contribuição que a pesquisa educacional pode – e deve – dar às políticas públicas é, muitas vezes, interpretada partidariamente.
Em função disso, os resultados de nossas pesquisas e estudos são qualificados ou desqualificados. É como se o papel do pesquisador na escola se restringisse à defesa intransigente ou do modelo vigente ou de sua crítica, dependendo da filiação do pesquisador/a, como se qualquer reforma educacional pudesse apagar a história de fracasso escolar desse país. Ou pior, como se pudéssemos refletir sobre educação numa perspectiva meramente técnica ou gerencial, ignorando sua essência política.
Não raro, esse traço estereotipado de nossa cultura escolar pode impedir o acesso de “grupos contrários” à política vigente para implementarem projetos de parceria com escolas, alijando professores e alunos, quer da Universidade quer das escolas básicas, da elaboração de projetos alternativos para transformação do trabalho escolar.
Por outro lado, apesar de a LDBEN preconizar autonomia de projeto pedagógico, continuamos a presenciar a homogeneidade no cotidiano de escolas públicas: desde os horários e períodos letivos até o desenho curricular e composição do corpo docente e técnico, a grande maioria de nossas escolas padroniza suas normas e procedimentos. Nesse contexto, é extremamente difícil que os sistemas escolares reconheçam uma escola como “laboratório vivo”, abrindo exceções em seus ritos administrativos para viabilizarem experimentação de alternativas de gestão e de ensino decorrentes dos projetos construídos conjuntamente com a universidade.
Essa homogeneização do cotidiano, implicada no cumprimento de regras e ritos para todos os professores e escolas, condiciona diretamente a elaboração de propostas de transformação que poderiam estar sendo gestadas quer nas escolas quer nas universidades. Vale registrar que tal homogeneização não é exigida para as escolas privadas – que, talvez exatamente por isso, possam se tornar loci privilegiados de inovação educacional e se converterem em locais preferenciais para a realização dos estágios e consolidação de parcerias.

Pensar parcerias hoje implica, portanto, reconhecer estas armadilhas do cotidiano escolar, condicionadas por leis de um sistema escolar impactado por infindáveis reformas/projetos educativos que podem bloquear possibilidades de mudanças e desenvolvimento profissional docente. Os mecanismos do sistema escolar para reproduzirem o fracasso são bastante perversos e frustradores – muitas vezes as “normas do sistema” não estão minimamente preparadas para enfrentar as alternativas de ação decorrentes de um exercício conseqüente de repensar a escola, essencial para a concretização de bons projetos formadores de professores. Apontei em trabalho anterior (DIAS-DA-SILVA, 2001) que a cultura da escola, suas regras e ritos, decididamente podem bloquear possibilidades formativas quer para os licenciandos quer para os professores. A escola tem ritmos próprios, normas e rotinas que condicionam a prática pedagógica até mesmo dos mais bem sucedidos professores que, apesar de partilharem nortes políticos e teóricos claros e uma concepção humanizada de educação escolar, raramente tem poder para enfrentar as regras da instituição escolar. Vale lembrar que mesmo a literatura estrangeira aponta o viraser da função formativa da escola: que elas se transformem em redes de auto-formação continuada, como sugere Nóvoa (1991); ou que escolas se constituam como organizações aprendentes, como apontam Fullan e Hargreaves (2000), reconhecendo claramente a dificuldade de construção dessa proposta. Além disso, pesquisas recentes (LOURENCETTI, 2004), por exemplo, apontam os riscos do desinvestimento profissional e da intensificação do trabalho docente nas escolas públicas. Elas mostram que a construção de escolas como espaços formativos e de experimentação, como organização aprendente – como defendem os colegas estrangeiros – certamente não é ponto forte da cultura de nossas escolas e pode estar muito longe do poder de ação dos professores e da universidade6 . Finalmente é decisivo registrar: as ciladas não se reduzem apenas às escolas e sistemas escolares. É inevitável reconhecer também a ignorância e omissão da universidade com relação ao cotidiano das escolas básicas. É imperioso reconhecer o apartamento existente entre professors e teachers, mesmo entre os colegas da área da Educação. Freqüentemente presenciamos a reação de grandes cientistas, pasmos ou indignados quando se confrontam com os cadernos e provas produzidos por seus próprios filhos na escola ou irritadíssimos com o precário domínio da leitura e escrita dos seus alunos ingressantes na universidade e/ou, sobretudo, na Pós-graduação. Entretanto, esses mesmos professores se mantêm apartados do cotidiano de escolas, num processo de exterioridade em relação aos demais professores, como se tudo que acontecesse lá não nos dissesse respeito, reiteradamente se omitindo[...] Será que a tarefa de parceria universidade-escola pode se reduzir ao cumprimento de realização de estágios na licenciatura ou desenvolvimento de projetos realizados apenas pelos docentes da área de Prática de Ensino? Por que aos bacharéis apenas compete ficar comodamente criticando a fragilidade dos projetos educacionais para desqualificá-los? Qual o papel das universidades na transformação de nossas escolas de ensino fundamental e médio?
As condições de trabalho dos professores e dos formadores de professores Ludke (1994, p. 7), agudamente, já sinalizava há mais de dez anos: A licenciatura não é uma atividade valorizada, não recebe incentivos nem estímulos e, até, pode acarretar, para os que a ela se dedicam, uma certa reputação um pouco inconveniente, na medida em que os afasta das atividades nobres ligadas usualmente à pesquisa.

Qualquer reforma curricular e construção de novos projetos educativos em nossas universidades hoje esbarra nas regras e ritos para o trabalho docente na área de Educação. A exigência de implantação das novas Diretrizes não implicou qualquer alteração das estruturas acadêmico-administrativas das universidades, mais uma grande cilada para fragilizar sua viabilidade.
Nas carreiras médicas tanto a realização de disciplinas de natureza teórico-práticas, quanto dos estágios implica reduzido número de alunos sob responsabilidade de um docente e envolvimento direto de técnicos e auxiliares especialmente contratados para instrumentalizarem o trabalho formativo, incluindo financiamento direto de profissionais experientes (ou mesmo residentes) para acompanharem a formação profissional dos graduandos. Enquanto isso, nas licenciaturas a carreira universitária se reduz a contratos que se voltam ao ensino de uma disciplina nuclear (ou conjunto de disciplinas), de natureza teórica, com carga horária mínima exigida7 .
Em muitas instituições, um docente universitário não pode justificar trabalho docente a partir das horas (e horas, e horas) empregadas na supervisão de estágios e/ou realização de projetos cooperativos com escolas. Oficinas, workshops, laboratórios e seminários têm sido, no Brasil, considerados apenas como atividades “extracurriculares”. Esse contexto é perverso para qualquer projeto competente de formação de nossos graduandos sejam eles bacharéis ou licenciados. Em qualquer país do mundo hoje as universidades têm clareza sobre a necessidade do enfrentamento da dicotomia teoria-prática, em todas as áreas do conhecimento.
Esse contexto se agrava quando consideramos que nenhum(a) professor(a) universitário(a) hoje tem sua carreira valorizada pelo investimento em ensino. Cada vez mais é o investimento em pesquisa e publicações (preferivelmente em revistas estrangeiras, com referees) que confere mérito e destaque ao docente universitário. Tais regras valem não apenas para médicos ou matemáticos, físicos ou historiadores. Valem também para os docentes da área de Educação, é fundamental registrar.
Do ponto de vista das regras curriculares é bom lembrar, por exemplo, que se na área da saúde – assentada em legislação específica do Ministério da Saúde e/ou recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) – as universidades cumprem a regra de que as disciplinas profissionalizantes restrinjam o número máximo de alunos por turma, na área da Educação isto não ocorre. Não há qualquer legislação impedindo que um único docente se responsabilize pela supervisão de atividades práticas de 100 ou mais licenciandos, cenário perverso particularmente nas faculdades privadas. Perverso, sobretudo, quando consideramos que boa parte dessas instituições de ensino superior não dispõe sequer de laboratórios didáticos ou acervo básico de materiais escolares e didáticos para serem alvo de estudo dos licenciandos. Não contam, sequer, com medidas mínimas de apoio e infra-estrutura que viabilizem estágios em escolas públicas de periferia, escolas destinadas aos alunos oriundos das camadas populares pauperizadas – material e culturalmente – que deveriam ser nosso alvo preferencial de investimento profissional.

Outra questão nevrálgica é o investimento das universidades nos profissionais parceiros da formação: nos países desenvolvidos, os professores tutores (professores da escola básica) das escolas parceiras da universidade são remunerados para realizar o trabalho formativo com os licenciandos, seja pelo sistema escolar de que fazem parte seja pela Universidade que reconhece seu trabalho formador – ou seja, não é o docente universitário que responde sozinho pela realização e supervisão das atividades práticas dos iniciantes. Num contexto de trabalho intensificado, em que os professores brasileiros do ensino fundamental e médio se vêem assoberbado de tarefas e demandas, imersos num cotidiano contraditório com condições precarizadas de trabalho, qual será a recompensa profissional que a universidade e a rede de ensino atribuirão ao investimento (de tempo e trabalho) dos professores parceiros em nossos projetos de formação?
Considerações finais
Com todas essas ciladas materializando a fragilidade política da área de educação nas disputas pelos campos na universidade, nesses dois anos não foram poucas as universidades públicas que se viram obrigadas a produzir documentos relendo a legislação. Exemplifico com trecho de documento da UNESP que reconhece:
Apesar dos pareceres e resoluções do CNE permitirem o aligeiramento da formação dos professores, lutar contra isso é ponto de honra para as verdadeiras Universidades: não devemos abrir mão da formação teórica sólida de nossos alunos e muito menos concordar que sua formação se reduza a três anos, criando com isso – também concretamente – o profissional “de segunda linha” dentro da Universidade (CARVALHO 2003a, p. 218). É imprescindível registrar que a grande maioria dos cursos de formação de professores no Brasil não é de responsabilidade das universidades públicas e tiveram seus cursos de licenciatura reestruturados para se conformar às resoluções do CNE, muitas vezes, inclusive, enfrentando o desacordo dos educadores que compõem o corpo docente dessas instituições formadoras.
Enquanto isso, em boa parte das universidades públicas, esse cenário tem feito com que os docentes comprometidos com a construção de projetos político-pedagógicos sólidos para nossas licenciaturas estejam enfrentando inúmeros embates e, muitas vezes, de forma isolada, numa universidade fragilizada pela precarização de nossas condições de trabalho, levando a um imenso esforço e desgaste pessoal8 .
A agenda do início do século aponta que sejamos propositivos, sob pena de perpetuarmos o denuncismo imobilista de que somos acusados. Perante a isto, não tenho dúvidas em sugerir a imprescindível necessidade de juntarmos nossas forças com objetivo muito claro de valorização do trabalho docente e do conhecimento historicamente produzido (e racionalmente mediado) como ferramentas essenciais na consolidação de uma escola pública de qualidade como direito inalienável de cidadania, num país com história injusta e desigual. Para isso, são igualmente imprescindíveis alterações nas condições de trabalho dos professores e reconstrução das regras e ritos que norteiam os sistemas escolares e as universidades. Não há como “implantar diretrizes” sem que todo um conjunto de condições de trabalho e formação seja alterado[...]
Formar professores na universidade implica um projeto específico e partilhado por todos os docentes da licenciatura (não apenas os pedagogos). Implica envolver escolas, professores e a sociedade nesse processo de formação. Precisamos reconhecer que professores são intelectuais, profissionais sujeitos de seu próprio trabalho, protagonistas da prática pedagógica, portanto competentes para analisarem a realidade e recriarem alternativas de ação político-pedagógica. Mas é decisivo que eles disponham dos fundamentos para essa reflexão, que eles se apropriem das análises e interpretações construídas pelos investigadores sobre o universo social e a escola brasileira. É central que essa reflexão implique o compromisso desse professor com a transformação da sociedade injusta de que ele e seus alunos fazem parte, construindo mecanismos para se contrapor a essa escola excludente e autoritária. Mecanismos que precisam incluir também a quebra do isolamento e alheamento profissional dos professores e dos docentes universitários e sua partilha consciente com a construção de uma prática pedagógica democrática e comprometida com o conhecimento historicamente acumulado e valorizado pela humanidade.
Ao tentar analisar as difíceis questões com que temos nos defrontado e problematizá-las como ciladas, gostaria de provocar uma reflexão no sentido de que talvez tenhamos sido ou estejamos sendo enganados. Ciladas são meios ardilosos, são estratégias astutas para iludir9 . Nesse sentido, indiscutivelmente a melhor forma de evitar armadilhas é descobrir que elas existem. Só assim podemos buscar instrumentos para enfrentá-las ou desarmá-las.
Não tenho dúvidas em afirmar que o melhor mecanismo para desarmar essas ciladas é a defesa da profissionalização dos professores, mediante a construção de cursos de licenciatura que igualmente valorizem o domínio de conhecimento e a formação educacional dos professores, sob pena de perpetuarmos demandas de formação continuada para preencher lacunas de uma formação inicial insuficiente e precária.
Se para alguns essas proposições parecem óbvias, cumpre provocá-los com a discussão que atualmente permeia os Estados Unidos de Bush, onde impera um forte movimento pela desregulamentação da profissão docente, sustentado por grupos políticos conservadores e fundações privadas em defesa do fim da educação pública naquele país. Recomendo, enfaticamente, a leitura do brilhante artigo de Cochran-Smith (2001), atual presidente da American Educational Research Association (AERA) e uma das mais respeitadas pesquisadoras educacionais no mundo. Nesse trabalho ela desvenda os ardis discursivos a que estão sendo submetidos os educadores norte-americanos que – sob o manto da objetividade de resultados de pesquisa impõem a hegemonia do modelo empresarial, voltado para performance e produtividade dos professores reconhecida mediante scores em testes de avaliação dos alunos – estão sendo submetidos a um bombardeio ideológico em documentos que, entre outros, afirmam que basta testar as competências dos futuros professores ao invés de exigir uma longa lista de cursos e graus escolares (COCHRAN-SMITH; FRIES, 2001, p. 7). No limite, alguns desses documentos norte-americanos afirmam textualmente “a habilidade dos professores parece ser muito mais uma função decorrente de seus talentos inatos do que da qualidade dos cursos de educação.” (COCHRAN-SMITH; FRIES, 2001, p. 5).
É sob esse cenário que gostaria que minhas ciladas fossem interpretadas: nos USA esses discursos são explícitos e objetivamente apontam para a desqualificação da formação de professores considerada como perda de tempo e dinheiro; já no Brasil os discursos continuam camuflados, quando não cínicos: enquanto vimos repetir-se a afirmação da importância da educação e da profissionalização dos professores, multiplicam-se os projetos aligeirados e frágeis, sob a égide da valorização da prática. Enquanto unanimemente nos convencemos da importância de não padronizar currículos mínimos e incentivar a construção de projetos pedagógicos autônomos, ampliam-se programas de licenciatura que ignoram os fundamentos educacionais.
Se aliarmos o escasso número de vagas nas universidades públicas brasileiras às declarações recentes de membros do MEC apontando que “milhares de jovens estão concluindo o ensino médio sem ter aulas de matemática, física, química e biologia porque há falta de 270 mil professores na rede pública” (MEC..., 2004), não tenho dúvidas tem temer, cada vez mais, que nossas licenciaturas paguem o preço por uma expansão irresponsável...

Referências
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BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CP 2/ 2002. Diário Oficial da União, Brasília, 4 de março de 2002b. Seção 1, p. 9.
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